quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Uma negrinha que não se curvou ao preconceito

Sua fama de durona sempre chegou na frente. Não por menos, pois Miedir Santana da Silva precisou de muito pulso firme para comandar a Delegacia do Menor por quase 10 anos e, em seguida, por outro tanto, a Delegacia da Mulher, funções que exigiram dela postura enérgica, audácia, braveza e muita determinação. Mas, de contrapeso, essa mulher que já ultrapassou a casa dos 70, embora mantenha o vigor, carrega uma doçura que não tarda a emergir e que colaborou para transformar a vida de muita gente.

Doutora Miedir, como é conhecida, virou delegada da noite pro dia. Foi mais ou menos assim: de passeio em Cuiabá para ver a família, a cuiabana residente em Cubatão, onde era escriturária, recém formada em Direito e aprovada com mérito no exame da OAB, decidiu ficar por aqui e iniciou uma peregrinação atrás de trabalho. Mulher, negra e sem pertencer a uma família tradicional, encontrou muitas portas fechadas, até que, ao procurar o deputado Nelson Ramos, na Assembleia Legislativa, falou das dificuldades de conseguir servir a sua gente, apesar de advogada formada, ao que ele propôs: “quer ser delegada?”
Se tem uma coisa que jamais havia lhe passado pela cabeça era ser delegada, até porque a decisão de se formar em Direito obedecia a um profundo desejo de defender os fracos e oprimidos da arbitrariedade da polícia. Entretanto, ela não demoraria a entender que aquele era um bom lugar para exercitar seu desejo.
Ao assumir a delegacia do menor, ouviu de um escrivão que não precisava se preocupar com nada, que ele tomaria conta de tudo, pois havia uma forma de bater que só machucava por dentro e não deixava nenhuma marca externa. No ato, ela respondeu: “você acha que estou aqui para arrebentar uma criança por dentro?” e dispensou a oferta do policial.
A partir daí, ela descobriu que ser delegada exigia dela muito mais do que um diploma de advogada e ela se descobriu um misto de psicóloga, de médica, de assistente social, de professora e até de madrasta, um lado que se evidenciava quando era necessário “passar um bolo” nos meninos. Passar um bolo era sinônimo de usar a palmatória, um instrumento que a delegada jamais pensou em fazer uso, mas que se tornou inevitável em alguns casos.
Curioso é que a palmatória foi levada à delegacia por um pai que, preocupado com a hiperatividade do filho, deixou-o aos cuidados da delegada por uns dias. Bem acolhido, o garoto retornou para casa satisfeito com a estadia. Então, o pai levou-o de volta, junto com a palmatória, pedindo que ela fosse usada para corrigir o menino, pois “não quero que meu filho goste de delegacia”.
Adepta da integridade, Miedir tinha por princípio que quem está no cargo tem que dar o exemplo e isso lhe valeu um sem número de enfrentamentos com chefes de cargos públicos, políticos e desembargadores acostumados a distribuir favores atropelando leis e fazendo mau uso de seus cargos. “Essa negrinha está pensando o quê? Está pensando que é gente?”, esses diziam dela, como também algumas mães cujos filhos eram mantidos na delegacia até que se apurassem denúncias deles próprios contra chefes de gangues que os estimulavam a lutar entre si, a consumir drogas e a cometer outras infrações. “Essas mães não sabiam que eram os próprios garotos que pediam nossa ajuda e que estávamos apenas tentando defendê-los”, explica.
A indicação para ser a primeira delegada da mulher de Mato Grosso, também veio cercada de preconceitos. Mas “a negrinha” nunca se intimidou. Ao contrário, assumiu com o cargo todos os riscos para defender a romaria de mulheres que procurou o órgão com seus dentes quebrados, seus braços torcidos, seus olhos e suas bocas cobertos de hematomas e o resto de seus corpos cheios de cortes e escoriações. Era hora de contrariar o ditado corrente de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Ela se orgulha de nunca ter precisado usar pra valer o revólver que mantinha na gaveta, até porque ela o guardava sem balas. Preferia usar outras armas, como o argumento de que dispunha de um grupo de 40 mulheres dispostas a empunhar faixas e cartazes e fazer barulho, o que terminava por intimidar os valentões. Ela também deixava claro que não tinha receio nenhum de perder o cargo. Os punhos, usou três ou quatro vezes, numa delas em resposta a um comentário: “mulher é tudo igual, tudo vagabunda; você é outra”. “Eu nem vi a hora que meti a mão na cara dele”, argumentou.
A constatação de que conseguiu emendar muito moleque e também muito marmanjo dão a ela a certeza de que dirigir as duas delegacias foi muito mais do que desempenhar uma função. “Abracei foi uma missão”, diz, com os olhos marejados, a Doutora Miedir, indicada em 2007 para concorrer ao prêmio Diploma Mulher Cidadã Bertha Lutz, e homenageada no Carnaval de 2008 pelo Bloco Banana da Terra, com o samba-enredo Miedir em Verso e Prosa:

“A Verde e Rosa dá show de felicidade
Vem Miedir, explode com dignidade
Na claridade que induz brasilidade
Em poesia sacudindo esta cidade

É de arrepiar, de se orgulhar, oh... traz emoções
Neste mundo encantado, nosso Eldorado
Miedir é força de expressão
Sua trajetória de luta faz bater os corações

Vem dando um show de luminosidade
Faz acender esta cidade
Contra o preconceito racial

Nos braços do povo, na passarela do samba
Mulher amiga, delegada e companheira
Fez justiça, é contra a violência
A consciência negra vem brilhar no carnaval

Antes de Xana Cheirosa, delicada e melindrosa
Antes de ser bem notável, é guerreira gloriosa
Hoje o Banana te abraça e faz o teu carnaval
Miedir Santana hoje é o nosso astral.”