Ceferino Insauralde aprendeu o ofício de sapateiro
dentro da escola, como parte do currículo escolar, e se tornou um profissional
que ainda se mantém na ativa, embora seus 82 anos de idade.
A história dele vem à tona sem nenhum esforço. Sua
memória não deixa escapar datas, nomes de pessoas, de cidades e de ruas, fatos
cotidianos e acontecimentos históricos que ele vai desfiando feito um rosário
de contas. A boa conversa parece fazer parte do seu ofício.
Ceferino nasceu no Paraguai, num lugar conhecido como
Horqueta, cujo nome traduzido para o português é Forqueta, e significa um lugar
onde enforcavam maus políticos. Vivendo no Brasil desde os 23 anos, pouco tem
de paraguaio, exceto o sotaque que tempera suas histórias.
Adolescente, viveu as consequências da guerra civil
de 1947, que tirou as crianças da escola e provocou o caos na economia do
Paraguai. Em 1954, colocou a mochila nas costas e veio trabalhar e viver no
Brasil. Em Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul, fez um amigo que o levou para
trabalhar nas fábricas de calçados de São José do Rio Preto, depois Ribeirão
Preto e, por fim, São Paulo capital. Embora os bons salários que se pagavam lá,
Ceferino não se adaptou e tomou o trem de volta. Neste trecho da história, ele faz
uma pausa para lamentar os reflexos, segundo ele, da política capitalista que
substituiu as estradas de ferro e seus trens movidos à lenha, pelas rodovias e
o transporte à base de petróleo.
Mal chegando em Ponta Porã, encontrou um amigo
sapateiro que o convidou a abrir uma sapataria. No mesmo dia firmaram a
sociedade, formalizada em cartório, compraram o material e no dia seguinte
estavam produzindo e começando a ganhar dinheiro.
Com os negócios andando bem, Ceferino identificou uma
oportunidade de se instalar em Amambai, onde não havia nenhuma sapataria,
embora os muitos fazendeiros que poderiam comprar uma de suas especialidades,
as botas. E assim foi feito, desfez a sociedade com o amigo, depois de ele
garantir que poderia tocar o negócio sozinho, pegou a parte que lhe cabia na
sociedade e rumou para Amambai, onde direcionou sua produção de botas para
atender as fazendas.
E como a vida não é feita só de trabalho, foi em
terras amambaienses que ele se apaixonou e casou com uma jovem chamada Santa,
depois de flertar com ela por semanas a fio, quando ela passava na praça em
frente a sua loja, até engatar um namoro e um noivado.
A Revolução de 64 o pegou lá. “Estava lá quando Jânio
Quadros caiu, quando João Goulart assumiu e quando Castelo Branco, diante de um
país arrasado, pediu para os brasileiros apertarem o cinto. Não havia emprego,
não havia dinheiro e faltava até mesmo comida”. E ao invés de lucros, a
sapataria foi somando prejuízos, em 1965, em 1966, em 1967. “Em 1968, estava
trabalhando à base de troca. No quartinho dos fundos, ia guardando mandioca,
feijão, ovos e queijo, produtos que recebia em troca das botas que fornecia”.
Esgotados os recursos, veio com a família para Cuiabá
no embalo dos projetos da Sudam, destinados ao desenvolvimento da região amazônica.
E rapidamente se recuperou. O dinheiro voltou a aparecer, trazido
principalmente pelos fazendeiros que chegavam a comprar 200 botas de uma só vez
para calçar seus peões. Em 1974, ele já estava comprando um carro zero e pagando
à vista, um episódio que ele faz questão de contar:
“Com
dinheiro vivo no bolso, dois macinhos porque naquele tempo o dinheiro valia,
fui à loja da Ford disposto a comprar um Corcel que estava em exposição.
– Quero
comprar aquele Corcel, disse ao vendedor, que me respondeu de pronto:
– Você é
louco?, e foi falar com o gerente que estava sentado em uma mesa um pouco mais
à frente. Me deixaram esperando até que eu cansasse e fosse embora. Na saída,
chamei o vendedor e mostrei a ele os dois pacotinhos que tirei do bolso. E
então ele me convidou a voltar.
– Pouco
caso, meu amigo, nem pra cachorro, respondi e fui para a Chevrolet, onde
ninguém me atendeu. Entrei no escritório e me mandaram sentar e aguardar. Falei
que queria que me mostrassem um carro e me disseram que fosse lá fora olhar onde
havia dois. Fui embora de lá também.
Restou a
Trescinco, na época instalada em um pequeno barracão, onde fui recebido pelo
dono, Sango Kuramoti, que me avisou de um carregamento que estava por chegar e
que estava trazendo um lançamento. Antecipei a metade do pagamento e poucos
dias depois, Sango ligou, avisando que o carro havia chegado, meu primeiro
veículo zero, uma Brasília cor de alabastro.”
Os negócios de vento em popa, era hora de pensar em
investir na construção de uma fábrica e Ceferino comprou dois terrenos e
começou a juntar dinheiro para construir o barracão e comprar os equipamentos.
Por essa época, a esposa ficou doente e, não encontrando diagnóstico em Cuiabá,
foi se tratar em São Paulo. Em três meses, gastou 80 mil cruzeiros perambulando
pelas clínicas na capital paulista e voltou para buscar mais 70 mil, que também
foram gastos em vão.
“Felizmente, recém chegado em Cuiabá, o Dr. Jamil
Thomé descobriu rapidamente que se tratava de um problema de aderência
intestinal, proveniente de uma cesariana, o que foi resolvido com uma simples cirurgia”,
conta o sapateiro, que esgotou, então, os recursos guardados para ampliar os
negócios. Continuou trabalhando na sapataria, então instalada na Rua Joaquim
Murtinho, próximo à Praça Moreira Cabral, onde por duas vezes assaltantes
invadiram a loja e carregaram o estoque inteiro de mercadorias. Em pouco tempo,
Ceferino vendeu o ponto, parou de fabricar e montou uma pequena oficina de
conserto de calçados no CPA. E lá ele permanece até hoje, agregando uma receita
à aposentadoria, lendo a bíblia e recebendo amigos e clientes para um dedo de
prosa.