quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um sapateiro bom de prosa

Ceferino Insauralde aprendeu o ofício de sapateiro dentro da escola, como parte do currículo escolar, e se tornou um profissional que ainda se mantém na ativa, embora seus 82 anos de idade.
A história dele vem à tona sem nenhum esforço. Sua memória não deixa escapar datas, nomes de pessoas, de cidades e de ruas, fatos cotidianos e acontecimentos históricos que ele vai desfiando feito um rosário de contas. A boa conversa parece fazer parte do seu ofício.  
Ceferino nasceu no Paraguai, num lugar conhecido como Horqueta, cujo nome traduzido para o português é Forqueta, e significa um lugar onde enforcavam maus políticos. Vivendo no Brasil desde os 23 anos, pouco tem de paraguaio, exceto o sotaque que tempera suas histórias.

Adolescente, viveu as consequências da guerra civil de 1947, que tirou as crianças da escola e provocou o caos na economia do Paraguai. Em 1954, colocou a mochila nas costas e veio trabalhar e viver no Brasil. Em Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul, fez um amigo que o levou para trabalhar nas fábricas de calçados de São José do Rio Preto, depois Ribeirão Preto e, por fim, São Paulo capital. Embora os bons salários que se pagavam lá, Ceferino não se adaptou e tomou o trem de volta. Neste trecho da história, ele faz uma pausa para lamentar os reflexos, segundo ele, da política capitalista que substituiu as estradas de ferro e seus trens movidos à lenha, pelas rodovias e o transporte à base de petróleo.
Mal chegando em Ponta Porã, encontrou um amigo sapateiro que o convidou a abrir uma sapataria. No mesmo dia firmaram a sociedade, formalizada em cartório, compraram o material e no dia seguinte estavam produzindo e começando a ganhar dinheiro.
Com os negócios andando bem, Ceferino identificou uma oportunidade de se instalar em Amambai, onde não havia nenhuma sapataria, embora os muitos fazendeiros que poderiam comprar uma de suas especialidades, as botas. E assim foi feito, desfez a sociedade com o amigo, depois de ele garantir que poderia tocar o negócio sozinho, pegou a parte que lhe cabia na sociedade e rumou para Amambai, onde direcionou sua produção de botas para atender as fazendas.
E como a vida não é feita só de trabalho, foi em terras amambaienses que ele se apaixonou e casou com uma jovem chamada Santa, depois de flertar com ela por semanas a fio, quando ela passava na praça em frente a sua loja, até engatar um namoro e um noivado.
A Revolução de 64 o pegou lá. “Estava lá quando Jânio Quadros caiu, quando João Goulart assumiu e quando Castelo Branco, diante de um país arrasado, pediu para os brasileiros apertarem o cinto. Não havia emprego, não havia dinheiro e faltava até mesmo comida”. E ao invés de lucros, a sapataria foi somando prejuízos, em 1965, em 1966, em 1967. “Em 1968, estava trabalhando à base de troca. No quartinho dos fundos, ia guardando mandioca, feijão, ovos e queijo, produtos que recebia em troca das botas que fornecia”.
Esgotados os recursos, veio com a família para Cuiabá no embalo dos projetos da Sudam, destinados ao desenvolvimento da região amazônica. E rapidamente se recuperou. O dinheiro voltou a aparecer, trazido principalmente pelos fazendeiros que chegavam a comprar 200 botas de uma só vez para calçar seus peões. Em 1974, ele já estava comprando um carro zero e pagando à vista, um episódio que ele faz questão de contar:
“Com dinheiro vivo no bolso, dois macinhos porque naquele tempo o dinheiro valia, fui à loja da Ford disposto a comprar um Corcel que estava em exposição.
– Quero comprar aquele Corcel, disse ao vendedor, que me respondeu de pronto:
– Você é louco?, e foi falar com o gerente que estava sentado em uma mesa um pouco mais à frente. Me deixaram esperando até que eu cansasse e fosse embora. Na saída, chamei o vendedor e mostrei a ele os dois pacotinhos que tirei do bolso. E então ele me convidou a voltar. 
– Pouco caso, meu amigo, nem pra cachorro, respondi e fui para a Chevrolet, onde ninguém me atendeu. Entrei no escritório e me mandaram sentar e aguardar. Falei que queria que me mostrassem um carro e me disseram que fosse lá fora olhar onde havia dois. Fui embora de lá também.
Restou a Trescinco, na época instalada em um pequeno barracão, onde fui recebido pelo dono, Sango Kuramoti, que me avisou de um carregamento que estava por chegar e que estava trazendo um lançamento. Antecipei a metade do pagamento e poucos dias depois, Sango ligou, avisando que o carro havia chegado, meu primeiro veículo zero, uma Brasília cor de alabastro.”

Os negócios de vento em popa, era hora de pensar em investir na construção de uma fábrica e Ceferino comprou dois terrenos e começou a juntar dinheiro para construir o barracão e comprar os equipamentos. Por essa época, a esposa ficou doente e, não encontrando diagnóstico em Cuiabá, foi se tratar em São Paulo. Em três meses, gastou 80 mil cruzeiros perambulando pelas clínicas na capital paulista e voltou para buscar mais 70 mil, que também foram gastos em vão.
“Felizmente, recém chegado em Cuiabá, o Dr. Jamil Thomé descobriu rapidamente que se tratava de um problema de aderência intestinal, proveniente de uma cesariana, o que foi resolvido com uma simples cirurgia”, conta o sapateiro, que esgotou, então, os recursos guardados para ampliar os negócios. Continuou trabalhando na sapataria, então instalada na Rua Joaquim Murtinho, próximo à Praça Moreira Cabral, onde por duas vezes assaltantes invadiram a loja e carregaram o estoque inteiro de mercadorias. Em pouco tempo, Ceferino vendeu o ponto, parou de fabricar e montou uma pequena oficina de conserto de calçados no CPA. E lá ele permanece até hoje, agregando uma receita à aposentadoria, lendo a bíblia e recebendo amigos e clientes para um dedo de prosa.