quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Frei Moacyr, amor e fé a serviço da comunidade

Frei Moacyr estava de malas prontas para retornar a Mato Grosso do Sul e lá dar prosseguimento ao seu trabalho de pároco, servindo uma comunidade conforme determinação de seus superiores.  Mas, olha só que boa notícia, ele foi impedido de abdicar de seu posto junto à Paróquia Nossa Senhora do Guadalupe, em Cuiabá, por conta de uma pressão muito grande por parte da sociedade cuiabana, que se movimentou, envolvendo inclusive os poderes constituídos, para pedir a permanência do pároco. Um movimento que tem toda razão de ser, já que Frei Moacyr lidera o trabalho magnífico que transformou aquela paróquia em uma célula viva em constante vibração.

Pertencente à Ordem dos Franciscanos Menores, fundada por São Francisco de Assis e cujos membros realizam voto de pobreza, Moacyr Malaquias Jr se diz um frade do mundo com a missão de evangelizar. Apaixonado pelas coisas de Deus, ele vive essa missão com ardor. “Eu vivo isso e não me canso”, diz, acrescentando que já acorda pensando no trabalho que tem a ser feito.
A Paróquia, que se estende até o rio Bandeira, na região do Manso, possui 14 comunidades e aproximadamente 40 mil pessoas. Levar Deus para essas pessoas é a principal preocupação do frei que tem se esforçado para que seus fiéis cumpram os sacramentos (Batismo, Confissão, Eucaristia, Crisma, Matrimônio, Ordem, Unção dos Enfermos). “Os sacramentos são dons que Deus deixou para a Igreja”, explica ele, que não mede esforços para celebrá-los junto aos paroquianos.
A bem da verdade, ele move mundos e fundos para sacramentar os sinais sagrados, embora recomende que as pessoas não devem fazê-lo de má vontade e nem contra a vontade. Para estimular o casamento, por exemplo, ele implantou na paróquia o casamento comunitário, que acontece duas vezes ao ano, em junho, em honra a Santo Antônio, e em novembro, por ocasião das festividades de Nossa Senhora de Guadalupe. No ato mais recente, contraíram matrimônio 26 casais, sendo que mais cinco se casaram em sua própria comunidade, no bairro Sucuri.
O empenho adicional do frade se manifesta conforme a necessidade dos noivos, no sentido de resolver dificuldades e apresentar alternativas. Há casos em que ele compra as alianças, ou providencia um vestido, ou aceita uma condição especial, ou assume a tramitação de documentos, enfim. Ele conta o caso de um paroquiano que vinha protelando o casamento há anos porque desejava se casar no dia de Natal. O padre não se fez de rogado, realizou o casamento após a missa natalina e ainda almoçou com os noivos e a família deles, que fez um festão para comemorar.

A mesma determinação ele imprime aos inúmeros eventos promovidos pela paróquia, como a Caminhada pela Paz, a Campanha da Partilha, a Semana Cantorum de Música Sacra, que envolvem toda a comunidade.

Frei Moacyr é juiz do Tribunal Eclesiástico Regional que tem entre suas atribuições julgar causas de nulidade de matrimônio. A formação, que começou com o curso de Direito, foi complementada na Europa, onde ele viveu 13 anos e fez doutorado em Direito Romano e em Direito Canônico. Estudou na Pontifícia Universitá Antonianun de Roma, entre religiosos do mundo inteiro, e morou durante alguns meses na França, Espanha e Alemanha, para aprender a língua.
O pároco é um dos únicos brasileiros nomeados como Consultor da Congregação para o Clero. A nomeação foi feita pelo Papa Bento XVI e implica na emissão de pareceres sobre documentos que ele recebe diretamente do Vaticano.
O sorriso franco que ilumina seu semblante faça chuva ou faça sol é um elemento importante para compor o carisma do frei, que se desdobra para cumprir uma agenda apertada que mistura reuniões com o bispo, entrevista com noivos, confissões, celebrações ou mesmo telefonemas que pipocam o tempo todo e que ele atende com a boa vontade de sempre. Um carisma que a sociedade cuiabana não quis abrir mão e que fez com que ele tivesse que desfazer as malas, o que, no caso, é apenas força de expressão, porque um padre franciscano não leva nada consigo quando se desloca de um lugar para outro, ele está sempre de passagem. Assim como nós, na terra. Não é Frei Moacyr?


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Sem limites

Mesmo que ele não queira ser exemplo para ninguém, para mim ele é uma grande demonstração do quanto a gente desperdiça tempo reclamando da vida e sendo infeliz.
Mário Márcio da Silva Rondon perdeu os movimentos das pernas quando era pouco mais do que um bebê. Contava com 1 ano e 8 meses quando foi vítima da poliomielite ou paralisia infantil.
Mário nasceu em Poconé, cidade a 100 Km de Cuiabá,  em uma família de vários irmãos e foi criado apenas pela mãe, uma empregada doméstica hoje aposentada. O pai, ele sabe quem é, mas nunca houve aproximação. Fez falta? Fez, mas agora não faz mais.

A infância poderia ter sido um problema para o moleque que não via problema em jogar bola, mesmo que fosse com as mãos, em subir em árvore, em participar de qualquer tipo de brincadeira com os amigos.
A escola poderia ter sido um problema para o estudante que não via problema em ser ajudado pelos colegas sempre que precisava.
A faculdade poderia ter sido um problema para o universitário que precisava se deslocar todo final de semana para Cuiabá e que não via problema em depender da ajuda dos companheiros para subir e descer da condução ou para se dirigir à sala de aula.
O trabalho poderia ter sido um problema ... A vida poderia ser um problema...
Mário Márcio contornou todos os problemas a partir de uma filosofia simples que define a sua maneira de encarar a vida: “todo limite é a gente que põe!” Tanto que, literalmente, ele pinta e borda.
Artista de mão cheia, faz entalhe em madeira, arte que aprendeu através de um curso no SESC e ele conta que já vendeu várias peças. O bordado aprendeu com a tia e usa principalmente o ponto cruz para bordar nomes em toalhas e peças de roupa. Queria tocar violão, fez um curso de seis meses e já tem repertório para animar uma festinha com os amigos.
A vida profissional começou cedo, aos 14 anos. Foi sapateiro, office boy e dispensou muito trabalho para não perder o benefício assistencial à pessoa com deficiência. É que o deficiente que opta por exercer uma atividade remunerada perde o direito ao benefício, que corresponde a um salário mínimo mensal.

Hoje, formado em Pedagogia, Mário é Agente de Desenvolvimento Econômico e Social do governo de Mato Grosso, após ter sido aprovado em concurso público, e atua junto ao Sine (Sistema Nacional de Emprego), onde desenvolve um trabalho que lhe satisfaz. Bem integrado ao grupo, Mário conta com o apoio de uma cadeira de rodas e de colegas sempre prontos a dar uma mãozinha, se for o caso.
A falta de acessibilidade nas ruas e calçadas da cidade ele sente na pele todos os dias quando sai para almoçar num restaurante popular próximo. Mas nem disso ele reclama e mesmo quando não tem ninguém por perto para lhe ajudar com a cadeira, ele dá um jeito. “Procuro ser o mais independente possível”.
Depois de ter sido casado por nove anos, Mário Márcio está solteiro. Católico, agradece todas as noites por mais um dia e pelos amigos. Em breve estará dirigindo o seu primeiro carro, um Fox adaptado que ele financiou. Problemas para dirigir? Que nada, ele já fez autoescola, está habilitado e acredita que não vai ter dificuldade para enfrentar o trânsito.
É com essa carga de otimismo que Mário leva a vida, uma vida feliz de alguém que se considera tão normal quanto qualquer um. E que teima em dizer que não é exemplo para ninguém, porque “toda pessoa tem sua capacidade, basta querer”.



quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Holanda brasileira

Holanda era para ser Yolanda, mas uma confusão na hora de fazer o registro no cartório mudou o nome dessa catadora de lixo cuja trajetória em nada se compara com as características do país europeu, reconhecido por sua elevada qualidade de vida e por possuir um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano. Qualidade de vida é uma coisa que passa muito longe do mundo em que vive Holanda Arruda Paulino, uma brasileira nascida em Cuiabá que há 20 anos se sustenta com a reciclagem de lixo.
Ela já passou fome, teve a casa levada pela enchente, sustentou sozinha os três filhos e passou por um monte de outras coisas que provavelmente explicam o olhar melancólico que ela carrega no rosto. 
Com seu jeito tímido, conta que jamais casou de papel passado, embora tenha tido vários companheiros, entre os quais os pais de seus filhos. Deles, nunca recebeu pensão alimentícia. “Uma vez, fui atrás para conseguir um caderno para um dos meninos, mas o pai dele disse que não tinha dinheiro. Nunca mais pedi”.
Pedir é uma coisa que ela sabe fazer muito bem, desde que não seja para ela. Aliás, se tem uma coisa que deixa Holanda feliz é a oportunidade de ajudar as pessoas. Ela não tem medo nem vergonha de pedir o que for para quem quer que seja, se isto for para ajudar alguém. “Fico feliz de ser útil, só não acho jeito de pedir para mim.“
Dos tempos de maior dificuldade, ela lembra dos dias em que o dinheiro não dava nem para comprar pão e da enchente que por pouco não carregou sua casa com ela e as crianças dentro. “Estava dormindo e não vi a água vindo; a vizinha viu, gritou e ajudou a tirar as crianças pela janela”.
A mesma enchente que lhe deixou sem teto também foi responsável por algumas mudanças positivas em sua vida. Com a ajuda de uma assistente social, ela ganhou uma casinha no Jardim Umuarama e passou a receber o Peti, programa criado no governo FHC com o propósito de erradicar o trabalho infantil, o que contribuiu para melhorar a situação da família.
Embora seja uma boa faxineira, “desde os seis anos fazia faxina que nem adulto fazia tão bem”, Holanda se encontrou na atividade de reciclagem do lixo. “É uma coisa que eu entendo e que gosto de fazer.” O trabalho consiste em coletar, separar, limpar, prensar e vender. Entre os materiais recicláveis,  latas, garrafas pet, embalagens de leite, papelão e plástico.
A coleta é feita em alguns bairros como CPA, Morada do Ouro e Jardim Califórnia; no condomínio Residencial Santorini, no Coxipó; e em algumas empresas como Supermercados Comper  e Havan.
Como seus colegas da usina, Holanda não tem registro em carteira. Ela é associada à Coopemar (Cooperativa dos Trabalhadores e Produtores de Materiais Recicláveis). A jornada de trabalho segue a de qualquer trabalhador, das 7h às 17h, de segunda a sábado. A remuneração, proveniente da divisão dos valores apurados com a venda, equivale a um salário mínimo por mês e, segundo ela, não há benefícios de férias e 13º salário. Quanto ao INSS, ela disse que fazia o recolhimento por sua própria conta, mas no momento está sem recolher.
O que a faz permanecer numa atividade que lhe priva de benefícios que reforçam a renda do trabalhador é o amor pela atividade e a consciência de que está contribuindo para melhorar o meio ambiente, o que a maioria das pessoas não tem. Tanto que até entre o lixo reciclável que é recolhido em separado do lixo comum, com frequência são encontados restos de comida, papel higiênico e cocô de cachorro.
A função de catadora está lhe abrindo um caminho novo, que é o artesanato. E ela já começou a fazer cursos para aprender a fazer arte com materiais recicláveis.
Ambição? Holanda não tem. Desejo de ser feliz, sim. E isso se resume a ver os filhos bem, com saúde, trabalhando e cada qual com sua casinha. Felicidade para ela  também é sinônimo de oportunidade de fazer o bem. Nada em desacordo para alguém que além do nome, carrega no peito um coração do tamanho de um país.


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Flor da noite

Andrezinho se criou em meio às atenções dos vizinhos. Com frequência, a mãe saía e ele ficava aos cuidados da vizinhança, o que incluía um restaurante onde filava uma boia, brincava no parquinho e participava ativamente de todos os eventos. Esperto, curioso, desinibido, levava a vida como qualquer criança.
Um belo dia, Andrezinho, já crescido, assumiu o seu lado feminino e, então, nasceu Amanda. “Não, não foi assim de repente”, corrige ele. ‘Eu sempre me senti assim, só que era uma coisa escondida, eu me exibia sozinho, na frente do espelho”.

A mãe, Rose, lembra que já aos 5 anos ele dançava e rodopiava feito uma cigana. Na época, ela recebeu um recado de um centro espírita para comparecer lá porque seu filho tinha um problema, incorporava uma pombagira. Ela não foi, muito mais por falta de tempo do que por falta de interesse ou preconceito. Cabeleireira e manicure, tinha no sábado, que era quando aconteciam as sessões, um dia de muito trabalho.
“O André levava maquiagem na escola para maquiar as meninas e se maquiava também”, conta ela, que se atribui uma parte da culpa pela opção sexual do filho, em razão de suas constantes ausências em casa para atender clientes em domicílio.
“Não é culpa sua, não, mãe, sou assim mesmo”, consola André, que se declarou à mãe aos 13 anos, numa ocasião em que ela o colocou “contra a parede”. Aproveitando a deixa, aos 14 ele se vestiu de mulher publicamente pela primeira vez, numa festa de Réveillon em Chapada dos Guimarães. E daí pra frente incorporou definitivamente a sua porção (ou o seu todo) mulher, independente da contrariedade do irmão, que – embora já não se falem mais, tentou levá-lo à igreja para que o pastor o ajudasse a curar-se dos vícios, entre os quais o cigarro e a maconha. “Fumo perto de uma carteira por dia”, admite. E maconha? “Ah, um cigarrinho dura uns três dias”.
Apesar de seus 17 anos, Andrezinho já vende o corpão de 1m80 na noite cuiabana. “Faço ponto aqui próximo do bairro e também no centro”. O faturamento é de 150/180 reais por noite e fica na própria rua, “para pagamento das dívidas”. De vez em quando ganha um calote e a mãe tem que socorrer com dinheiro para voltar para casa. Mas isso não o intimida como também os riscos de assalto, de briga e de outros tipos de violência comuns nas ruas da cidade.
Seus clientes preferidos são os jovens e eventualmente rola uma química que prolonga o relacionamento por mais um tempo. Já “as mariconas”, que ele define como “homens incubados”, são o azarão da noite.
Pela vontade da mãe, André deveria preservar um comportamento de homem durante o dia, arrumar um emprego e, como se diz no jargão popular, “soltar a franga” somente nos fins de semana. “Quem vai dar emprego para alguém assim?”, preocupa-se ela, que jamais se conformou com a opção do filho. “Tolero porque sou mãe e não vou deixar o meu filho na rua, mas aceitar eu não aceito”. 
Isso não faz nenhuma diferença para André que alega ser muito feliz do jeito que é e não vê a hora de completar 18, que é para poder fazer uma porção de coisas que estão na sua cabeça, como viajar. Quer ir a São Paulo colocar um maravilhoso mega hair. Para o futuro, planeja ir à Europa. Para conhecer? “Não, para trabalhar, porque lá as brasileiras fazem o maior sucesso!”