Berê nasceu no Poção, bairro que, junto com a
Lixeira, o Areão, o Dom Aquino, o Campo Velho e alguns outros, é tipicamente
cuiabano. A casa onde ela mora também é. Em meio a um grande quintal, repleto
de mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, coqueiros e pitombeiras, ela viveu uma
infância feliz, embora seu temperamento então meio retraído. Era um tempo em
que se contavam histórias de lobisomens, de mulas sem cabeça, histórias que
agitavam o imaginário das crianças e as enchiam de medo. “Mas não tinha essa
violência que tem hoje e a gente saía pra pegar lenha, pra apanhar fruta e pra
lavar roupa no rio Cuiabá”.
O progresso veio e com ele, o asfalto, as grandes
construções que passaram por cima das matas, criando distâncias então
inexistentes. Mas não pense que ela reclama do desenvolvimento, muito necessário,
segundo ela, que transformou a cidade e que ela credita à ousadia do povo que
veio de fora. “O cuiabano tinha vergonha de montar uma banca e vender uma fruta
ou atravessar a cidade vendendo roupa dentro de uma mala, como faziam os turcos
ou mascates”.
Berenice Nunes Leão da Silva é a sexta entre os sete
filhos de Marina Nunes da Silva, uma neta de índio, e Pedro Leão da Silva, um
rosariense muito “do” esperto. “Meu pai tinha por hábito sair para pescar
vestindo calça branca de linho que mamãe passava a ferro de brasa. Na volta da
‘pescaria’ passava no Porto e comprava peixe pra trazer pra casa”.
No meio da prole, onde todos os nomes começam pela letra B, não falta o Benedito, uma homenagem muito comum nas famílias cuiabanas ao santo negro protetor de Cuiabá. No caso da família de Berê, dupla homenagem, pois a irmã mais velha dela também recebeu o nome de Benedita.
No meio da prole, onde todos os nomes começam pela letra B, não falta o Benedito, uma homenagem muito comum nas famílias cuiabanas ao santo negro protetor de Cuiabá. No caso da família de Berê, dupla homenagem, pois a irmã mais velha dela também recebeu o nome de Benedita.
Um a um, todos que passam pela Rua Papa João XXIII, em
frente à casa de Berê, cumprimentam a dona da casa, com muitos deles parando
para um dedo de prosa. Quem vê a cena, nem desconfia que ela já foi uma
garotinha tímida que se excluía das brincadeiras de rua e se fechava em casa.
“Até o dia em que me tiraram desse isolamento, me levaram para fazer teatro na
antiga rádio A Voz D’Oeste e minha vida mudou totalmente”.
Hoje, ela é presidente da associação do bairro e vive às voltas com requerimentos, ofícios e e-mails dirigidos às autoridades, buscando melhorias para o lugar. Daqui mais uns dias, será inaugurado um campo de futebol, construído a partir da sua determinação.
Hoje, ela é presidente da associação do bairro e vive às voltas com requerimentos, ofícios e e-mails dirigidos às autoridades, buscando melhorias para o lugar. Daqui mais uns dias, será inaugurado um campo de futebol, construído a partir da sua determinação.
A casa de Berê sempre foi ponto de encontro de muita
gente e para manter a tradição de casa cheia, ela, junto com o companheiro
Firmino, abriu um bar, o Quintal Cuiabano, onde recebe principalmente amigos
que, entre um petisco e outro e um gole de cerveja, resgatam o velho costume de
ocupar os quintais com roda de amigos, boa conversa e muita alegria. O bar
também preserva o antigo hábito de se reunir em frente das casas e ali ficar
até tarde, um costume que a violência está se incumbindo de erradicar. E, no
carnaval, a farra é garantida pelo bloco Cagô e Não Limpô, criado e mantido por
ela. Com cerca de 250 integrantes, o bloco tem bateria e trio elétrico e após
desfilar pelo bairro, anima a folia no Quintal.
Mas não se iludam os frequentadores do bar com os
dotes culinários da proprietária, que já deixou queimar muita comida.
Totalmente avessa ao fogão, ela delega essa tarefa ao Firmino, que, ao
contrário, é mestre na arte de cozinhar. Berê prefere ficar na outra ponta,
degustando seus pratos preferidos, costela com banana e peixe frito com farinha
e bananinha.
Aos 59 anos, aposentada após 32 anos como funcionária
pública, Berenice conserva um pouco do típico linguajar cuiabano, que tem algumas
características como trocar o “ão” ao fim das palavras por “on”, e, em algumas
sílabas, tende a substituir a letra “l” pelo “r”, além de se usar o adjetivo
indistintamente no gênero masculino, aplicados a seres femininos e masculinos. Nas
próprias palavras de Berê, “nun tinha praca” e “ele deu com mon”. E, embora ela
defenda que muita coisa do cuiabanês que se prega por aí seja folclore, vou me
utilizar dele para fazer propaganda do Quintal Cuiabano: lá o “petche” é bom
“demáss”, e a “cervedja” bem “dgelada”!