quarta-feira, 22 de abril de 2015

Filha do Poção

Berê nasceu no Poção, bairro que, junto com a Lixeira, o Areão, o Dom Aquino, o Campo Velho e alguns outros, é tipicamente cuiabano. A casa onde ela mora também é. Em meio a um grande quintal, repleto de mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, coqueiros e pitombeiras, ela viveu uma infância feliz, embora seu temperamento então meio retraído. Era um tempo em que se contavam histórias de lobisomens, de mulas sem cabeça, histórias que agitavam o imaginário das crianças e as enchiam de medo. “Mas não tinha essa violência que tem hoje e a gente saía pra pegar lenha, pra apanhar fruta e pra lavar roupa no rio Cuiabá”.
O progresso veio e com ele, o asfalto, as grandes construções que passaram por cima das matas, criando distâncias então inexistentes. Mas não pense que ela reclama do desenvolvimento, muito necessário, segundo ela, que transformou a cidade e que ela credita à ousadia do povo que veio de fora. “O cuiabano tinha vergonha de montar uma banca e vender uma fruta ou atravessar a cidade vendendo roupa dentro de uma mala, como faziam os turcos ou mascates”.
Berenice Nunes Leão da Silva é a sexta entre os sete filhos de Marina Nunes da Silva, uma neta de índio, e Pedro Leão da Silva, um rosariense muito “do” esperto. “Meu pai tinha por hábito sair para pescar vestindo calça branca de linho que mamãe passava a ferro de brasa. Na volta da ‘pescaria’ passava no Porto e comprava peixe pra trazer pra casa”.

No meio da prole, onde todos os nomes começam pela letra B, não falta o Benedito, uma homenagem muito comum nas famílias cuiabanas ao santo negro protetor de Cuiabá. No caso da família de Berê, dupla homenagem, pois a irmã mais velha dela também recebeu o nome de Benedita.
Um a um, todos que passam pela Rua Papa João XXIII, em frente à casa de Berê, cumprimentam a dona da casa, com muitos deles parando para um dedo de prosa. Quem vê a cena, nem desconfia que ela já foi uma garotinha tímida que se excluía das brincadeiras de rua e se fechava em casa. “Até o dia em que me tiraram desse isolamento, me levaram para fazer teatro na antiga rádio A Voz D’Oeste e minha vida mudou totalmente”.
Hoje, ela é presidente da associação do bairro e vive às voltas com requerimentos, ofícios e e-mails dirigidos às autoridades, buscando melhorias para o lugar. Daqui mais uns dias, será inaugurado um campo de futebol, construído a partir da sua determinação.
A casa de Berê sempre foi ponto de encontro de muita gente e para manter a tradição de casa cheia, ela, junto com o companheiro Firmino, abriu um bar, o Quintal Cuiabano, onde recebe principalmente amigos que, entre um petisco e outro e um gole de cerveja, resgatam o velho costume de ocupar os quintais com roda de amigos, boa conversa e muita alegria. O bar também preserva o antigo hábito de se reunir em frente das casas e ali ficar até tarde, um costume que a violência está se incumbindo de erradicar. E, no carnaval, a farra é garantida pelo bloco Cagô e Não Limpô, criado e mantido por ela. Com cerca de 250 integrantes, o bloco tem bateria e trio elétrico e após desfilar pelo bairro, anima a folia no Quintal.
Mas não se iludam os frequentadores do bar com os dotes culinários da proprietária, que já deixou queimar muita comida. Totalmente avessa ao fogão, ela delega essa tarefa ao Firmino, que, ao contrário, é mestre na arte de cozinhar. Berê prefere ficar na outra ponta, degustando seus pratos preferidos, costela com banana e peixe frito com farinha e bananinha.
Aos 59 anos, aposentada após 32 anos como funcionária pública, Berenice conserva um pouco do típico linguajar cuiabano, que tem algumas características como trocar o “ão” ao fim das palavras por “on”, e, em algumas sílabas, tende a substituir a letra “l” pelo “r”, além de se usar o adjetivo indistintamente no gênero masculino, aplicados a seres femininos e masculinos. Nas próprias palavras de Berê, “nun tinha praca” e “ele deu com mon”. E, embora ela defenda que muita coisa do cuiabanês que se prega por aí seja folclore, vou me utilizar dele para fazer propaganda do Quintal Cuiabano: lá o “petche” é bom “demáss”, e a “cervedja” bem “dgelada”!